domingo, 25 de maio de 2014

Memento Mori



   Pensava que o suficiente era a margem ideal das coisas. Se me perguntado o que achava dos ladrões que tinham suas mãos decepadas no oriente médio eu lhes diria que aquilo era um exagero, bastava que lhes decepassem os dedos. Era suficiente, diminuiria o sangramento.
   Em tudo tanto que fiz, procurei assim ser: tinha suficientes amigos e suficientes obrigações, lia suficientes livros e conhecia suficientes músicas. Subconscientes desperdícios.
   Tinha 15 anos, duas calças e um par de tênis quando a vi parada na pilastra do pátio. Olhos quietos e castanhos, tez alva. Pensei em lhe dizer suficientes palavras e talvez conseguir uma suficiente atenção, mas pela primeira de muitas vezes eu não pude e pela primeira de muitas vezes senti-me perdido.
   Já se foi muita água. Penso nas corredeiras de um rio enquanto lambem as pedras sem nunca realmente encostarem-se a elas – há sempre o limo e abaixo do limo há a pedra. Sinto-me assim passando pela vida sem realmente encostar-me à vida.
  Memento mori, e isso não me é mais suficiente. Nunca haverei de ser suficiente. Nunca haverei de gozar a mim mesmo essa vida. Levanto-me e abro a janela ao sol do meio dia, sol sem sombras e sem alívio. Memento mori, et carpe diem.
   Levanto-me antes de Apolo, perco-me no chuveiro em meio à água, sinto a vida fluir e se dissipar a meu redor. O Café não me acorda mais, sou pouco mais que uma engrenagem que sabe o que fazer, mas desconhece o fim proporcional das coisas. Sinto-me só em meio ao ônibus lotado e nem mesmo a velha do meu lado me faz sentir mais vivo. Memento mori, talvez seja a última coisa que ela precisa se lembrar. Carpe diem  e talvez seja a única coisa que resta a nós dois.
   Existem dois urubus que vivem na janela de minha sala. Vejo-os e eles parecem sussurrar para mim: Memento mori, estávamos aqui antes de você e estaremos até que seus ossos e ossos de seus filhos sejam pó. Tenho pena deles.
   Há genialidade no sofrimento e razão no caos. Somos todos feitos pelo caos e passamos pela vida em busca de ordem. Quase tangenciamos a ordem e nos arrastamos novamente para dentro de nós mesmos. No caos nós acreditamos.
      É noite, já se foram a lua e as plêiades. Aqui estou a me sussurrar: memento mori. E isso não é mais suficiente.

sábado, 22 de março de 2014

Ainda

Ainda te amar
É como um caco de vidro
entrando mais fundo toda a vez
que tento tirar
rompendo carne, vasos e nervos
se tornando enfim
parte de mim.


Ainda te amar
É como respirar a poeira velha
agitando os lençóis de móveis
a muito esquecidos
e lembrar da mobília velha e bonita
da decoração


Ainda te amar
É como enfiar a mão numa caixa de gelo
Como furar uma veia
Como respirar ácido
Respirar ácido
te respirar

domingo, 16 de março de 2014

Sobre Ser.

Ser é mais que viver, é pensar.
O ser não pode pensar em si mesmo, pois não pode ser em si mesmo.
Assim, o ser é inconsciente de si, de tal que o ser nunca é completo sem revoluir em si.
O Ser precisa destruir a si, se fragmentar e se reconstruir. Isto é revoluir.
A autofagitação insiste em devorar, digerir e reaproveitar somente o que é bom.
Não há como se autofagitar completamente, o ser deve manter partes antigas de sim - imperfeitas portanto, em cada revoluir.
Assim, aritmeticamente, o ser não é capaz de ser perfeito mesmo após revoluir em cinquenta ou cem vezes. A dor do revoluir não traz perfeição, mas diminui a imperfeição.
Só se pode revoluir ao se conhecer. Só se pode se conhecer ao se destruir. Só há sofrimento na destruição.
Revoluir é sofrer.
Nem todo sofrer é revoluir.